quinta-feira, novembro 24, 2005

Clichê

Acordou
Olhou pela janela o céu nublado, o tempo chuvoso.
O relógio digital piscava, havia desligado com a queda de energia de madrugada.
Calçou os chinelos, foi à cozinha, abriu a geladeira, encheu um copo de leite. 3 goladas.
Deu bom dia para o cachorro que abanava o rabo. Fez-lhe um carinho na cabeça.
Esfregou os olhos, olhou para a janela novamente. O mesmo tempo nublado.
Olhou para a cama com os lençóis desarrumados, o tronco descoberto da moça e a cabeleira loira espalhada pelo travesseiro. Ela roncava bem baixinho. Crianças devem dormir assim, pensou.
Olhou de novo pela janela, o dia ia ser chuvoso.
Sentou ao pé da cama enquanto o cachorro lhe deitava aos pés.
Se fumasse, teria acendido um cigarro, mas aí já seria clichê demais.

quarta-feira, novembro 16, 2005

Solitária solidão.

Não sei que dia é hoje, não sei e já pareço não querer mais saber. O filete de luz que adentra a cela é o único vestígio de luminosidade deste dia, os insetos rastejantes e pequenos roedores, únicos e fiéis amigos em meses. Solitário penso na vida, no que vivi e no que ainda me espera. Só. Sempre só.

Por onde meus pensamentos ainda teimam em viajar, encontro muros praticamente intransponíveis por todos os lados, cercando minhas vontades, meus desejos mais ocultos, minha gana de me ver livre e atemorizadamente feliz novamente. Para falar a verdade, descobri que tenho medo de estar lá fora, e isso eu agora sei com toda certeza! Morro outra vez e morreria de novo, se pudesse, a cada pensamento ou a cada minuto que conto com as batidas do meu coração, quando penso no que pode me aguardar por detrás de cada porta, de cada bruta face, de cada olho envoltos em lágrimas e dor, dor que por certo eu mesmo criei.

Muito fiz, coisas que há poucos dias orgulhosamente relatava. Agora meus fantasmas vivem a me rondar, chicoteiam incansavelmente minha alma com carícias feitas de couro cru e balas de chumbo que não se sentem na carne. O som daquela arma quente ecoa em meus ouvidos, me ensurdecendo noite após noite de sono. O sangue em minhas mãos não me deixa descansar, não me deixa em paz, não me deixa...

Rezaria se soubesse ou se fosse apresentado ao Pai. Mas Ele não viria aqui compartilhar da minha solitária solidão, compartilhar do escuro desta construção inumana, demoníaca e fétida. Ele não me ajudaria a pisar em baratas e chutar camundongos famintos por restos de minha comida. Ele não me faria esquecer, sim, de como é sentir na pele o sol e brisa matutina no rosto. Se tivesse certeza que realmente existisse, falaria que até Ele se esqueceu de mim, o pecador jogado neste buraco raso, nesta fossa podre e entupida de bosta dura de dias, de meses, mas comigo, esquecido e arrependido, mas ainda vivo.

Hoje é segunda, ouvi um dos muitos homens que tratam de mim, falar. Mas que isso me importa?

sexta-feira, novembro 04, 2005

Descaso.

A catarse conseguida através das feridas agora curadas
Purificação bastante árdua, provação da persistência
de uns e outros filhos que ali puseram,
com muito ou todo o cuidado do mundo,
a mulher centenária por sobre lençóis puídos,
panos feitos de nacos trançados de algodão outrora virgem
mas ainda exalando o aroma inebriante do álcool.
Álcool... líquido que desinfeta todo o ambiente
Que desinfeta todo o corredor
As salas, alguns bisturis e muitas mãos cansadas
Mas que não purga o descaso
Dos que regem este Estado venal
Que não purga os pecados dos que não tem
Dos que os que não crêem
Dos que não vêem
E dos que ainda morrem
em filas de hospitais públicos.
Arde o álcool sobre as chagas da corrupção,
Arde... mas só os que vivem em sofrimento choram pela dor...